Jun

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A artista, convidada para cantar na 3ª edição do Quintal do Pagodinho’, esteve no dia 14 de junho na gravação do DVD e escreveu uma emocionante e sensível crônica para sua coluna no Jornal O Globo:

Oásis de Zeca

Quintal de Zeca Pagodinho é oásis, e naquele pagode de terça-feira, todos se sentiam juntos e leves

Nunca tinha ido a Xerém. Ando num vaivém danado nestes últimos tempos e praticamente fui de São Paulo pra lá, ainda me curando de uma gripe inclemente, que deixou minha voz velada, fantasma de tudo que é cantor que se preze! Quando atravessamos o portão, o quintal de Zeca Pagodinho formigava. As pessoas, todas alegres, pareciam se conhecer há muito tempo e pareciam também estar ali desde sempre.

De cara, meu parceiro amado — xará do de Xerém —, Zeca Baleiro, me recebe com um sorriso saciado, já tinha se divertido ao microfone com seu bem-bolado “Samba do Aprouch”, cuja gravação original tem o afiado anfitrião dividindo a faixa: “Venha provar meu brunch, saiba que eu tenho aprouch, na hora do rush, eu ando de ferry boat”! No meu tempo de Niterói, quando tínhamos uma graninha a mais, pegávamos o cobiçado aerobarco mesmo!

Zélia Duncan entre Leila Pinheiro e Moacyr Luz Foto: Murillo Tinoco

Zélia Duncan entre Leila Pinheiro e Moacyr Luz
Foto: Murillo Tinoco

O segundo colega que encontro é o Moa! É como os amigos chamam o sambista e poeta das melodias Moacyr Luz. Moa, sempre carinhoso, com seu tempo muito particular de falar e sorrir, me deu um longo abraço “quebra costela”, daqueles de exorcizar qualquer dia ruim. E um cheiro bom de feijoada, vindo lá do fundo. Leila Pinheiro demorou a me ver, sempre ligada no som, nos acordes, nas graças. Nesse momento cantava Luiz Melodia. Logo depois, um cuidadoso João Bosco puxou um de seus clássicos, “Kid Cavaquinho”. Mais abraço, mais sorriso, mais piada, e a tarde apenas começava. “Quem quer um abraço, um pouco de alguém, abraçando tem!” E tome de abraçar, os sorrisos de Rosa Maria Araújo, carioca valorosa, à frente do MIS; Sérgio Cabral Pai, com seus beijinhos doces, cúmplice e testemunha da Música Brasileira. Chico Pinheiro, outro parceiro entusiasmado da nossa música. Ana Maria Braga e Cissa Guimarães, Hélio de la Peña, Tia Surica, Charles Gavin, Piau, minha amiga querida Roberta Sá, cheia de sambas e alegrias no assunto. Mosquito cantou, todo feliz, mestre Wilson das Neves, Fundo de Quintal chegando, tudo junto e misturado, tudo samba. Finalmente vejo Zeca Pagodinho, o dono do quintal, com fones de ouvido, “ô, Zelinha!”. Mais abraço, mais carinho, mais palavras boas. E o samba comendo solto, sob os cuidados de Rildo Hora, com a certeza de que vai dar certo. Onde mais eu poderia ter essa certeza, nestes dias de “sei lá o que vai ser de nós?”.

A mesa comprida, os músicos, como cavaleiros da távola retangular, “machucam” seus instrumentos com suingue. Uma turma sentada só para as palmas, eu não disse aplausos, são palmas de samba, pros refrães que fazem voar a galera. Na hora de cantar fui pra ponta, pra cabeceira, digamos. Em frente a mim, o nobre incentivador, o dono da festa, com um neném no colo, me manda um beijo. Coração quente, me sentindo completamente acolhida, vi a música sair de cada um de nós e ser servida igualmente para todos.

Uma vez tive a honra de produzir com Bia Paes Leme o álbum de 70 anos de Hermínio, e Zeca era convidado numa faixa com Chico Buarque. Gravação marcada para 15h, Zeca apareceu meio-dia. Ficamos preocupados, porque o outro convidado estava longe de chegar. Estava animado, com uma turma, sentou gentil ao meu lado e me serviu um copo bem gelado de cerveja. Por dentro eu me perguntava: “digo ou não digo, digo ou não digo?”. Disse. “Sabe de uma coisa, Zeca, eu não bebo, olha que doido”… Tentei sorrir. Ele me olhou meio sério e sem respirar: “Ah, não? Então, hoje isso vai mudar!” Todos rimos, o copo ficou deslizando na mesa e tudo deu certo. Ele pediu pra ouvir o samba, que ele tinha que aprender, e assim se fez, embora não tenha parado pra ouvir, passava por lá de vez em quando e cantarolava um pedacinho, antes de puxar algum assunto. Às 14h45m, Chico chegou, com o samba na ponta da língua. Muitos abraços e piadas depois, foram para o microfone. Eu não tinha ouvido Zeca cantar a música toda nenhuma vez. Nem eu, nem ninguém! Mas foi só apertar o botão vermelho e lá foi ele, com sua musicalidade irresistível, seu timbre quente e carioca, linha direta com nosso melhor coração, e a mágica da música aconteceu. Cantaram, brincaram, encantaram a todos. E a faixa se chama “Mulher faladeira”.

Aconteceu de esbarrarmos num avião. Mais assuntos do que nuvens no céu, turbulência zero. Vez em quando, falava alguma coisa bem alto, pra algum companheiro de equipe, que estava mais na frente, o voo todo ria. Zeca parece distraído, mas tá ligado. Zeca é agregador e bota a mão na massa quando o papo é sua comunidade e sua escola de música. Quintal de Zeca Pagodinho é oásis, e naquele pagode de terça-feira, todos se sentiam juntos e leves. Sempre senti que a nobreza do samba morava no seu coletivo, nos seus generosos braços abertos, que geram amigos e refrães. Pelo menos no pagode do Zeca eu garanto que é assim!